sexta-feira, 20 de julho de 2012

O dia em que o chinelo deu um chuto na bota de montar (O som é divino: The Roots - The Seed)

Partilhar


Roía uma maçã enquanto observava a paisagem. Roía é o termo certo, assim como os coelhos roem cenouras se tiverem a sorte de as apanhar. Não mordem ou trincam. Roem-nas.
Os cantos da boca ora subiam, ora desciam consoante os pensamentos lhe eram agradáveis ou não. É fácil deixar correr os pensamentos quando o único som que se ouve é o mar e é o sol quem nos cumprimenta e acolhe.
Pensava em todas as coisas que já tinha dito ou feito apenas por maldade ou rancor. Pensava também que as circunstancias já tinham tornado muitas vezes essa mesma maldade ou rancor na escolha mais acertada. Ou pelo menos assim lhe parecia e ponto final.
Efetivamente era uma pessoa difícil e gostava de o ser. Sentia um certo prazer em minimizar os outros e já se tinha habituado a ser assim há muito tempo. Tinha que viver com isso. Aprendera a viver com isso.
Sabia que algumas das suas atitudes não eram mais que toscas chamadas de atenção. Toda a vida tinha sido preterido relativamente ao seu irmão e assistia constantemente ao orgulho que o pai sentia por ele. O pai exigia muito do seu irmão mas também se orgulhava dele tornando-o dono dos seus sonhos.
Bem, parte de si era o que era por causa deles ou apesar deles, para ser mais preciso.
- Estou aqui!!! Raios vos partam. Olhem para mim!!!
Pensava nela agora. Mesmo contra sua vontade tinha-se reaproximado mais uma vez fingindo desprezo. Fingindo ignorá-la. Quando não a ignorava, fazia troça dela, castigava-a com altivez e comentários baixos, embora isso por fim parecesse ter deixado de surtir qualquer efeito. Merda!
Por vezes tinha sentimentos e irritava-o que os demais, não entendessem isso.
- Que triste que sou. Um triste palhaço pobre ao pé dos ricos.
Entrelaçado em ressentimentos, decidiu que também não havia de se ir embora, ficaria ate que o amassem, raio que os partisse todos. Faria tudo o que esperavam dele mas no intimo havia de continuar a planear as suas pequenas e mesquinhas revoltas. Mais do mesmo, já era assim há muito tempo. Tempo a mais.
Tudo isto o embrulhava e apertava e debruçou-se um pouco mais olhando agora para baixo, para o fundo do rochedo onde o mar estava branco de espuma e batia com fúria nas rochas, lambendo-as raivosamente.
Hesitou.
Caramba, é tramado ter consciência de que não prestamos para nada. E agora ao olhar para baixo, novamente aquela porcaria de ideia de se atirar, desta vez sem asas, voltou a imperar.
O que ele atirou foi o resto da maçã roída e ficou a olhar até que desaparecesse na espuma.
Fácil, não?
Não... pensou ele. Fácil não era... Era preciso ter coragem...
E afastou-se.

Paula AbrEu
em 20/7/2012
(O dia em que o chinelo deu um pontapé a bota de montar)


Partilhar

Sem comentários:

Enviar um comentário