QUEBRANTO
A velha senhora dizia o meu nome em cruz sobre gotas de azeite que desapareciam ao cair na água como por magia. Eu limitava-me a olhar meio incrédula, meio crente, subjugada com aquela dor tão forte que sentia a latejar na minha cabeça. Aquela dor na alma toda mas que se concentrava no meu cérebro e que parecia o martelar numa uma bigorna com força. Muita força.
A velha lá continuava a sussurrar a sua ladaínha: «Some-te diabo para as ondas do mar coalhado, some-te diabo para as ondas do mar coalhado», e eu, de pálpebra levantada, ostentando o meu ar enfadado, mirava-a de soslaio prestes a fugir dali a arrastar a minha alma pesada e dorida para perto de um Ben-U-Ron, quando a minha mãe
- Não!!! Descontrai-te e acredita. Isto já é demais. E não se cura só com Ben-U-Rons.
Ao fim destes anos todos ela continua a ter este poderzinho irritante que foi ganhando ao longo do tempo á força de ter tido (quase) sempre razão e as histórias acabarem sempre com
- Vês?... eu bem te dizia!
E eu
- Sim mãe... sim mãe, pronto, não digas mais nada, ok?
E posto isto, lá baixei a pálpebra rebelde e deixei-me ficar, enquanto a velhota, discretamente, continuava: «...se eles quiserem bem podem, de onde eles vieram que pra lá tornem».
Podia passar por esta senhora na rua, mil vezes, que nunca lhe reconheceria qualquer poder de mudar o imutável ou expulsar quebranto ou fosse lá o que fosse para além de tricotar cachecóis, fazer belos biscoitos com chá e tomar conta de gatos dengosos. Mas lá estava ela, concentrada e crente, cabelinho muito branco e posto por ordem, sem um único fio fora do lugar, casaquinho de malha bêje por cima de uma imaculada camisa branca com bordado inglês e saia preta abaixo do joelho com irrepreensível sapato ortopédico a finalizar. Uma avozinha no seu melhor estilo e ainda assim, com um poder oculto, sem dúvida, uma vez que as bolinhas de azeite caiam agora inteiras, já não se desfaziam na água e eu já me sentia leve, como se finalmente a minha alma barulhenta se tivesse desencurralado do meu cérebro e se começasse a espalhar novamente por todo o corpo. Alívio.
A minha mãe percebeu e fez um meio sorriso que não entendi muito bem se era para manifestar o seu contentamento por mim ou apenas por ter tido razão mais uma vez. Aproximou-se, deu-me um empurrãozinho ao de leve a indicar o caminho da porta de saída e ficou para trás conversando com a minha salvadora.
Despedi-me e saí apreciando o surreal do momento e a cada passo que dava menos me apetecia entender. O entendimento tinha deixado de fazer sentido agora que me sentia repentinamente nas nuvens.
A minha mãe saiu atrás de mim e deu-me o braço, protectora:
- Então?? Que tal está a Madame Racional??
Ri-me
- Ó mãe! Que se lixem os Ben-U-Rons!! Avozinhas ao poder!!!
Rimo-nos as duas. No meio das gargalhadas ainda consegui ouvi-la dizer:
- Vês?? Eu bem te dizia!!!
Paula AbrEu
(num dia de Inverno, com uma dor de cabeça de bradar aos céus :)
Dezembro 2012
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